Ouvi dizer essa semana que todo mundo começou, algum dia, a escrever um livro. O meu foi aos 15 anos; romancezinho, como haveria de ser. E se as palavras não vêm a mim aos 18, deixo escrever aqui a menina. Ainda não consigo rir desses capítulos interminados. Olho para ela com certo orgulho, ainda, de irmã mais velha. Irmãs, com algumas coisas em comum. Mas, sem dúvida, pessoas distintas.
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Era uma noite fria. Eu descansava sobre a rede, na varanda do casebre de veraneio, observando o mar. As ondas crepitavam nas pedras, a lua minguava numa luz pálida, cegando as estrelas. Eu não ouvia nada além do som do mar e do vento que soprava até ele. Então, ao longe, n’algumas pedras, eu distingui uma silhueta confusa, recortada sobre o gelo da noite clara.
E ela se aproximava... Parecia cintilar, conforme caminhava na minha direção. A uns poucos pares de braças distante de mim, parou. Era um rapaz, e era muito alto. Meu nariz deveria estar pela altura dos seus ombros. Seu rosto estava oculto, mas eu sentia uma expressão acolhedora naquelas sombras.
É como se fosse um amigo que o destino esquecera de me apresentar. Um amigo que finalmente, a caminhar, pausadamente se aproximava.
Debruçou-se sobre mim, perto o bastante para tocar meu rosto com seus cabelos lisos, de um negro ameno. Sua mão precipitou-se às minhas faces, e as sombras que cobriam suas feições começaram a se desvanecer...
O sol bateu à minha janela com um estrépito. Abri os olhos lentamente, e com a visão ainda embaçada, vi a hora... estava atrasada! Levantei de um pulo, e me vesti tão rápido, que não tive tempo de separar duas meias da mesma cor. Tomei minha xícara de chocolate quente, mastiguei precariamente uma torrada e, deixando um beijo no rosto de minha mãe adormecida no sofá, apanhei meu casaco de lã púrpura e saltei para a porta dos fundos. Ventava muito aquela manhã. Eu sentia meus lábios racharem enquanto eu caminhava até a escola. Mas meus pensamentos não se detinham no frio, nem na fome, tampouco nas meias ímpares. Até a expectativa do início daquele novo semestre fora varrido da minha mente naquela noite, no breve espaço de um sonho. Eu sabia que não fora um sonho qualquer. Mas isso não importava. Não ter descoberto a face daquele ente desconhecido me trazia raiva do sol, que me acordara nada mais que a tempo de ir para a aula.
Me aproximando da escola, encontrei vários amigos... pessoas que durante todas as férias, que passei isolada no sítio de meus avós, me fizeram muita falta. Eu gosto do campo, mas me fazia falta companhia. Alguns rostos estranhos passaram por mim, com um olhar envergonhado. “Alunos novos... por que são sempre tão esquivos?”, disse a Patrícia, quando uma garota de origem asiática esbarrou nela, pediu desculpas num tom inaudível, e saiu com o rosto da cor do meu casaco. A Patrícia e eu éramos amigas desde a sexta série. Eu a conhecia o bastante, para saber que em situação alguma ela seria encabulada. Pelo menos assim pensava. Já eu, eu compreendia aquela garota. As mudanças eram difíceis para mim, e apesar de ter alguns bons amigos, e me dar bem com quase todos meus colegas, eu era uma menina tímida. Quase morri ao ouvir aquela voz serena sussurrar ao meu lado “Oi, Rafa!”, na escada para o segundo andar. Uma voz que eu não ouvira durante aquelas três semanas de recesso.
Naquela manhã o auditório parecia mais cheio que no início do semestre anterior. Vários alunos haviam sido transferidos para o Colégio Mariano Pereira, já que a outra escola particular da cidade falira, sem nem poder terminar o ano letivo. Eu nem tive contato com nenhum deles nesse primeiro dia, tirando a japonesinha que esbarrou na Patrícia. Fiquei entre meus amigos na tradicional reunião “pós-férias”, e depois da aula de História, com a Sra. Fernandez, passei o intervalo também ao lado deles. Mas enquanto saía da sala, eu ainda tentava entender porque um garoto de óculos olhava para meus sapatos e ria durante a apresentação da professora. Eles eram novos, e eu os achava muito bonitos. Enquanto pensava nisso, fui puxada para o pátio pela Patrícia.
“- Vocês viram quanta gente nova? Estou adorando isso...
- Você tem razão, Giovanna. Tem uma menina na minha classe de Biologia... Mais linda até mesmo que você.
- No seu lugar, eu não pararia de investir na Giovanna, não. Se você disser um ‘oi’ pra essa menina, só vai vê-la sair com o rosto da cor de um tomate, igual à que topou em mim no caminho para cá... Como são acanhadas!
- Ai, Patrícia! Elas não conhecem ninguém aqui, não é à toa que ficam um pouco tímidas. Além do mais, não tira as esperanças do rapaz! Henrique, se quiseres uma ajudinha...”
Não me lembro muito bem da conversa. Eu estava completamente absorta no capítulo nove do livro de História. Falava dos mitos que o homem tinha a respeito do mar, e que o fazia temer os oceanos. Eu não era uma aluna estudiosa aos extremos, apenas me esforçava o suficiente. Mas História sempre foi minha matéria preferida, e aquele texto era mesmo muito bem escrito. Eu li com atenção sobre cada uma das criaturas marinhas que a humanidade tanto temia, e pensei que talvez viéssemos a descobrir que as pessoas não morrem. Que a morte é apenas uma crença boba. Parece absurdo, mas para os povos medievais, absurdo seria dizer que a Terra é redonda.
“Rafaela, você estava distraída quando calçou essas meias, não?”. Só aí eu me dei conta do motivo pelo qual aquele garoto ria de mim durante a aula. Não eram os meus sapatos. Eram as meias...
“- Ah! Eu acordei tarde, e me vesti muito rápido para me importar com a cor das meias.
- Mas então foi muita sorte pegar justamente uma verde-limão, e essa listrada com ratinhos, que sua tia lhe deu, e que você tanto odeia.”
Nessa hora, voltei a pensar no sonho. Todo aquele alvoroço tinha me dispersado. Nesse momento o sino para a aula seguinte tocou, e causou alvoroço suficiente para dispersar-me novamente.
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