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quarta-feira, outubro 22, 2008

Tensão superficial

(procure orações coordenadas e subordinadas)

Fechou a porta atrás de si e largou as chaves sobre o balcão da cozinha. Passara a semana inteira esperando ao lado do telefone, agora torcia para não ouví-lo tocar. Ele fora gentil e engraçado, mas era superficial. Ela queria alguém em quem pudesse mergulhar, afundar, deixar-se afogar. Afundou-se nos travesseiros.

Deveria ser hora de acordar, pois o sol já atravessava as cortinas e suas pálpebras. O relógio lhe dizia que estava atrasada - por que não gritara? Com o café frio do dia anterior em um copo de plástico, desceu os degraus apressada. Chegando ao hall do prédio, que não era varrido há semanas, parou por um instante. Recobrou todas as lembranças da singela despedida, ali, sobre o chão sujo, para delas despedir-se. Então seguiu, mais apressada.

Sempre achara os rostos no metrô mais profundos do que na supefície. Talvez fosse a iluminação florescente, que destaca todos os defeitos da face. Talvez fosse a mudez geral. As pessoas que falam parecem sempre fúteis, por mais que falem algo sério ou intelectual. Falar é um ato presunçoso. Os calados anônimos perdiam o encanto ao emergir das escadas da estação, discutindo freneticamente com seus celulares sob a luz do dia.

No escritório, reinava o burburinho matinal - quase um silêncio para os habituados. Caminhando pelos corredores de cabeça baixa, ela esperava que ninguém notasse sua presença. Algumas portas eram especialmente evitadas: contabilidade, marketing, e agora recursos humanos. Prometeu, mais uma vez, nunca mais sair com alguém do trabalho. Não podia mais sequer demitir-se em paz.

Segundo o calendário, fazia sete meses e treze dias desde o momento em que sentiu-se vazia. Poupou-se de contas as horas (brigara com o relógio). Fora tempo suficiente para conseguir uma promoção, mudar de apartamento e conhecer qunze caras que só a esvaziaram mais. Ou continuava tentando, ou permitia perder-se.

Deteve o olhar na janela por um instante. Haviam tirado as cortinas para lavar, portanto não era possível deixar de observar a vista. Aproximou-se lentamente e se debruçou sobre o parapeito. Seus olhos brilharam de espanto: ele estivera sempre ali. Hudson, Camila. Camila, Hudson. Não houveram palavras, nada mais foi preciso. Ela mergulhou de cabeça e deixou-se afogar.

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